A NOIVA - Livraria Cultura

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26 abr. 2013 ... A NOIVA. Tudo começou com um sonho. Uma porta que se aproximava ... da sua agenda, enquanto anotava os últimos detalhes, na sua hora.
Ana Clara Bezerra Saraiva Sá

A NOIVA Tudo começou com um sonho. Uma porta que se aproximava a largas passadas. Lentamente, começava a perceber o que acontecia ao seu redor. O tapete vermelho. Pessoas. E uma mão estendeu-se para abrir as portas duplas. E seus olhos abriram. A médica correu para acudir a paciente que acordava. Ela tossia fortemente, enquanto tentava se livrar das agulhas e das máquinas. Uma enfermeira chegou e a pôs de volta na cama, ajudando a médica a checar os sinais vitais. E esta última pegou o prontuário enquanto fixava-se nessa paciente tão incomum. Não por ter alguma característica física diferente ou alguma força sobre-humana, mas sim pelos seus trajes. Ela havia chegado vestida de noiva. – Dra. Lília? – chamou a enfermeira. – Que há? – Nada. Por favor, dê um calmante a esta paciente. Creio que dentro em breve ela poderá ir para casa. A paciente deu um sorriso irônico que a enfermeira não viu, ao dar-lhe as costas. Como se as palavras da médica parecessem engraçadas de alguma forma estranha. Lília olhou mais uma vez para aquela figura, tentando entender a expressão. Tentando captar alguma explicação para o estado em que ali chegara, dois dias antes. Já passava das dez da noite, já havia cessado o constante “entra e sai” no hospital. Alguns pacientes eram encaminhados a outras partes, alguns ainda estavam sendo atendidos enquanto outros dormiam em suas macas. E essa aparente calma foi quebrada com um grito agudo e penetrante cortando a noite. Correram até as portas e 9

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viram um vulto cinzento, coberto de camadas de tecido. Quando o ergueram, uma mulher vestida com algo que fora branco fixava-lhes o olhar azul, sem nada ver. E então desmaiou. Foi levada às pressas para o interior do hospital, a roupa rasgada e enlameada, mas com lantejoulas e pedrarias que lembravam algo elegante. E o véu que lhe envolvia a cabeça esclareceu tudo: era uma noiva. Vinda de algum lugar desconhecido, sem identificação e sem parentesco com ninguém. A chuva a trouxera. E não se sabia até onde a levaria. Os cortes foram tratados, os exames foram realizados, e tudo aparentava perfeita ordem. Exceto pelo fato de que a paciente custava a acordar. E sua pulsação variava constantemente. Como se estivesse angustiada. Como se sonhasse e tivesse um pesadelo. Mas ela acordara, enfim. Com fundas olheiras e expressão nada agradável. Um sorriso irônico. E sem uma palavra sequer proferida até aquele momento. – Você já sonhou com casamentos, doutora? – perguntou a voz rouca. O braço que segurava o prontuário se retesou. – Dizem que sonhar com noiva significa receber uma pequena herança, uma quantia em dinheiro, e ser uma noiva é sorte – respondeu. A paciente deu um sorriso amarelo. – Depende da cor do vestido da noiva, concorda? – O quê? – A morte também é uma noiva não é, doutora? – respondeu com o mesmo sorriso. E a porta do quarto se abriu quando uma atendente chamava o nome da Dra. Lília. E ela imaginava o que a noiva quisera dizer com aquilo. 10

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A Marcha Nupcial ecoava pelas paredes da igreja. Virou para trás e viu as portas se abrindo e a noiva entrando. O lugar era banhado de luz como um casamento matinal parecia. Todos se curvavam àquela entrada triunfal, uma linda visão. A própria noiva era uma visão. O rosto coberto pelo véu, todo em rendas. O vestido com uma longa cauda, tudo trabalhado. E quando a luz ofuscante cessou e a sombra surgiu foi que ela percebeu. O vestido da noiva sem face era preto. E ela acordou enquanto desfalecia. Lília levantou a cabeça do balcão. Havia caído no sono em cima da sua agenda, enquanto anotava os últimos detalhes, na sua hora de repouso no plantão. Guardou a agenda na bolsa e vestiu o jaleco, indo observar seus pacientes. Enquanto passava pelo corredor, foi atraída pela janela de vidro da paciente e sentiu o estômago despencar. Um vulto preto estava em pé ao lado da misteriosa noiva, olhando para ela. Segurando sua mão. Lília ficou paralisada onde estava, olhando fixamente a cena. Uma mão escorregara para fora da manga do vulto preto. Uma mão seca e ossuda, cinzenta e sem vida, contrastando com a mão jovem e delicada da paciente. Esta fixou o olhar azul no de Lília, como que pedindo desculpas. E Lília viu. Viu a mão ossuda cintilar e como que “reviver” ao mesmo tempo em que a mão pulsante tornava-se pálida e sem vida, tão rápido quanto uma respiração. E o vulto carregou a mulher no colo, vestida de noiva como chegara ali, com a face plácida como se dormisse. E a cauda de renda do vestido de noiva preto saiu pela janela, levando a outra noiva de branco. E o quarto estava vazio. O bip contínuo acordou Lília do transe, enquanto a equipe corria para o quarto, empurrando a porta. A mulher ainda estava ali. Porém, em parte, apenas. Estava morta. Lília pegou a mão dela depois 11

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que tentaram reanimá-la sem sucesso. Não estava magra e sem vida como vira. Estava como antes, porém não tinha pulso. Lília saiu perturbada. Estavam tomando todas as providências após o óbito. Parada cardíaca, ao que parecia. Não havia outra explicação já que, exceto pelo fato de estar morta, ela estava praticamente curada de todos os ferimentos. Nenhum nome. Nenhum contato. Apenas o corpo e o vestido rasgado, que acharam por bem lavar e consertar na medida do possível, para dar-lhe, ao menos, um enterro digno. A médica pegou o carro no estacionamento, tentando pôr os pensamentos em ordem. Não se lembrava de caso mais misterioso e tentava colocar na cabeça que a visão da noiva de preto não havia sido real. E ia conseguindo aos poucos. Já vira outros pacientes morrerem, mas nunca de forma tão misteriosa ou com origem tão peculiar. Estava esperando o semáforo ficar verde em uma rua pequena e, quando o carro começou a andar, um vulto atraiu a sua visão. Aterrorizada, viu a noiva de véu preto caminhar lentamente na sua direção. Tentou desviar e fugir dali, mas não viu o carro que avançou o sinal vermelho. Não viu a vida passar como um filme em alguns segundos, não deu tempo. Viu apenas aquela mão ossuda segurar-lhe a mão sob os destroços do carro acidentado. Viu apenas aquela noiva levar-lhe para longe, para o corredor com uma luz. Mas naqueles segundos – naqueles míseros segundos que precederam a colisão – ela viu que a paciente tinha razão. Que a Morte é muito mais astuta do que pensamos, que ela realmente é capaz de nos levar para longe no abraço mortal sem percebermos. Que o último suspiro da vida é como o sim para o casamento com a eternidade. Afinal a Morte nem sempre é um ser encapuzado. Às vezes ela veste um véu de noiva. 12

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