Caderno de Letras 23 Final - Faculdade de Letras - UFRJ

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Maldon, a história dos vencidos: fato histórico e discurso literário no sacro império romano-germânico (séculos XII e XIII)

Roberta Leopoldino

O épico The battle of Maldon foi escrito por um autor anônimo no século X, provavelmente não muito após a batalha homônima, e narra um confronto ocorrido entre o exército anglosaxão do condado de Essex, liderado pelo earl Byrhtnoth, e um exército invasor de Vikings daneses, liderado por Justin e Guthmund. O confronto é narrado de tal forma que não se sabe se a real culpa da derrota jazeria no conde Byrhtnoth ou em seus fugitivos; o poeta faz claras referências a uma autoconfiança excessiva da parte do earl, mas ao mesmo tempo censura fortemente aqueles que escapam da luta. Onde, afinal, estava o erro? Num primeiro momento, examinar-se-ão brevemente os dados historiográficos necessários para a compreensão da época; em seguida, ver-se-ão os ritos e costumes usuais que conferiam a um anglo-saxão o status de guerreiro, e suas funções dentro do reino. Por fim, analisa-se o caráter do protagonista Byrhtnoth, como ele é apresentado no poema e de que forma ele se encaixa no perfil anglo-saxão estudado anteriormente. Finalmente, entra-se na problemática de co-mo o discurso do exército derrotado é construído, através da forma narrativa escolhida pelo poeta do épico supracitado. Cadernos de Letras - n. 23 - p. 227-240 - jan./dez. 2007

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1. Dados historiográficos Para melhor entender o poema, é necessário analisar também o contexto histórico no qual ele está inserido. Por conseguinte, segue-se um breve apanhado da situação da Inglaterra entre os séculos V e X. 1.1.

A Heptarquia

Após a retirada dos romanos das ilhas britânicas, no século V – mais precisamente no ano de 410 d.C. – o povo ficou entregue às invasões bárbaras, com defesas insuficientes para deter os novos conquistadores. Vários povos nórdicos aventuraram-se então na costa britânica: escandinavos, saxões, francos e teutônicos, vindos da costa do Báltico, entre outros. Contudo, dentre todos, os que mais se destacaram e melhor se estabeleceram nas ilhas foram os jutos, que se estabeleceram em Kent, os anglos, que fundaram os reinos de Ânglia Oriental, Mércia e Nortúmbria, e os saxões, que fundaram os reinos de Wessex, Sussex e Essex (respectivamente, West Saxons [saxões do oeste], South Saxons [saxões do sul] e East Saxons [saxões do leste]). Estes sete reinos dominaram a ilha a partir do século VI, criando a Heptarquia, e dando origem ao povo anglo-saxão. Contudo, estes reinos não conviviam em paz e tudo que os mantinha juntos era uma espécie de “tradição através da qual um daqueles reis era reconhecido como tendo alguma espécie de supremacia sobre os outros expressa pelo título bretwalda” (apud STRONG, 1996, p. 13) Após dois séculos de disputas, a supremacia final coube a Wessex, após sua vitória sobre Mércia na batalha de Ellandune no ano de 825 d.C.

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1.2. Estrutura da sociedade anglo-saxã Os anglo-saxões, como a maioria dos povos germânicos, eram um povo guerreiro, fiéis ao ideal de lealdade a seu líder – o comitatus (explicado pelo historiador romano Tácito em seu Germania, e exemplificado no épico Beowulf), um acordo de fidelidade entre o líder militar e seus seguidores, sendo a fuga e deserção a maior das desonras. Tal lealdade era cobrada pelo líder através de sua superioridade hierárquica e largamente recompensada na divisão dos espólios de guerra. Após seu assentamento nas novas terras, os saxões também se tornaram um povo agricultor. Por isso, as cidades eram pequenas e pouco numerosas, e sua estrutura simples: o rei, que ocupava a posição politicamente mais importante do reino, mas cujo poder era tão somente uma extensão dos poderes dos líderes tribais; os nobres, chamados earls ou ealdormen, proprietários hereditários de terras; os thegns ou thanes, os quais arredavam terras do rei e eram a espinha dorsal da organização militar; os ceorls, homens livres sem terras, em sua maioria comerciantes e fazendeiros; e por fim, os theows, escravos, sem qualquer espécie de direitos legais. Após a ascensão do cristianismo, o clero também passou a assumir uma importante posição na pirâmide social anglo-saxã. Como o reino de Wessex acabou por subjugar os outros reinos da Heptarquia, o poder dos reis de Wessex foi gradualmente aumentando, até que os descendentes de Alfredo, o Grande, reinassem sobre toda a Inglaterra. Todavia, o poder do rei era restringido pelo Witenagemot, o conselho dos sábios, composto principalmente pelos earls e pelo alto clero. Com o passar do tempo, porém, a autonomia do rei foi crescendo, em detrimento do poder do Witenagemot. Uma das principais marcas da origem germânica dos anglosaxões era seu sistema legal. A vingança era uma forma válida de justiça e havia também um elaborado sistema de multas para danos

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pessoais de todos os tipos. Por fim, em caso de homicídio, aplicavase o wergeld (“o preço do homem”) – pagamento à família da vítima. O preço variava de acordo com a posição social do morto. Tal era o estado de coisas no que se chamaria posteriormente de Inglaterra no século IX, quando as invasões Vikings começaram a ameaçar de fato o equilíbrio finalmente alcançado. 1.3 Alfredo e os Vikings As expedições Vikings – sempre presentes, porém esporádicas e de pequeno porte – começam a acelerar a partir de 843. A primeira expedição Viking na Europa ocidental deu-se no final do século VIII, quando três navios aportaram na costa de Wessex. Desde então, diversas expedições semelhantes ocorreram na costa da Escócia, Irlanda e Gales. Até que o rei Alfredo de Wessex construísse sua frota, os daneses moviam-se livremente pelo território, primeiro pelos rios e mares, e depois por terra. Estes Vikings – em sua grande maioria provenientes da Dinamarca – logo encontraram o melhor jeito de adentrar a ilha: aportar na costa de Ânglia Oriental, percorrer as decadentes Nortúmbria e Mércia, para somente então invadir Wessex (o reino dominante e melhor protegido). O poder de Wessex atingiu seu apogeu com o rei Alfredo – que carrega consigo o epíteto de “O Grande”. Ele subiu ao trono no ano de 871 e durante seu reinado de quase trinta anos, o avanço dos Vikings foi eficientemente detido. O sucesso dos descendentes de Alfredo em construir um reino deve-se também ao fato de que o movimento Viking se fez ausente durante grande parte do século X – os invasores agora se ocupavam em se estabelecer nas terras conquistadas. Todavia, esse equilíbrio foi definitivamente quebrado no reinado de Æthelred (978 -1016). Devido a diversos erros em seu

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governo – que lhe acarretaram o epíteto de “O Despreparado” – a Inglaterra anglo-saxã acabou por ser anexada ao reino de Canuto, o Grande (1016 - 1035), senhor da Noruega e Dinamarca. No reinado de Æthelred, um dos conflitos que se destacaram é a batalha de Maldon. 1.4. A batalha de Maldon A batalha ocorreu em agosto de 991 d.C., logo acima do estuário Blackwater, na entrada da cidade de Maldon (no reino de Essex), entre daneses liderados por Justin e Guthumnd, e um pequeno exército anglo-saxão liderado pelo earl Byrhtnoth. Estudiosos variam ao fixar o dia exato entre 10 e 11 de agosto. Os anglo-saxões foram derrotados, após o earl ter cedido passagem aos invasores através do rio que os separava. Todo o conflito é narrado no poema épico A batalha de Maldon. De acordo com os estudos historiográficos e o próprio poema, os Vikings teriam pedido a Byrhtnoth um tributo para não atacarem a cidade; o earl não cedeu aos desejos do invasor e os Vikings levaram a cabo sua ameaça. Contudo, estes teriam se encontrado, em princípio, impedidos de fazê-lo, por não haver passagem para eles – pelo menos, nenhuma que oferecesse segurança e abrigo contra o ataque dos anglo-saxões. De algum modo, no entanto, uma forma de passagem é achada, eles avançaram e a batalha teve início. A narrativa épica diz que teria sido o próprio Byrhtnoth quem teria cedido a passagem a eles, para que pudessem lutar. Durante a luta, o earl morre, e diversos de seus guerreiros fogem do campo de batalha, permanecendo uns poucos fiéis a seu lorde, tentando resgatar seu corpo. Sobre o próprio Byrhtnoth, sabe-se muito pouco. Ele assume, por volta de 956 d.C., o posto de ealdorman. Parece ter apoiado o rei Edgar em suas campanhas; na época da batalha, possuía provavelmente a posição de primeiro nobre do reino.

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2. As características do guerreiro anglo-saxão “A condição de guerreiro era um tanto quanto elevada em termos sociais, e era aberta somente para certas classes de indivíduos.” (apud POLLINGTON, 2006, p. 28). Dentro dessas classes, somente aqueles que fossem fortes e saudáveis eram aptos para o treinamento militar. A guerra era principalmente um meio de se adquirir riquezas em quaisquer formas: gado, escravos, território, ou mulheres. Contudo, outra razão muito importante era a busca por prestígio e honra. Esta podia causar rivalidades e acirradas competições entre grupos. A um vitorioso cabia, por conseguinte, prestígio por seus feitos no campo de batalha e ganhos materiais. O senhor mantinha seu bando de companheiros desfrutando de sua hospitalidade; eles, em retorno, reforçavam as leis de seu lorde. Como ponto central deste sistema de troca estava a distribuição de presentes. Esse ritual criava uma espécie de “débito” entre o doador e o receptor do presente. Se o doador possuísse um status social mais elevado, receberia em troca de seus presentes a lealdade do outro, ou seja, o beneficiado se comprometeria a grandes feitos em nome do seu senhor; se, ao contrário, o doador estivesse em uma posição hierárquica inferior à de seu beneficiado (neste caso, o “presente” seria muito provavelmente espólios de guerra), ele ganharia do outro promessas de maiores ganhos e favores em geral do lorde. Por fim, caso doador e receptor estivessem no mesmo patamar social, o “contra-presente” seria outro presente de igual valor, como prova de uma relação pacífica entre as partes. Assim era cobrada a lealdade do guerreiro anglosaxão. Havia outras implicações mais severas neste esquema de trocas:

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Provavelmente o pior destino que poderia se abater sobre um guerreiro era que seu lorde caísse em batalha e ele sobrevivesse. A morte do líder quase que inevitavelmente significava derrota, mesmo tão tarde quanto em 991, no ano da batalha de Maldon, Essex, onde a morte de Byrhtnoth selou a questão. (POLLINGTON, 2006, p. 101)

Sobreviver ao seu senhor poderia ser inclusive pior que a morte, pois todos os seus rendimentos e terras lhe seriam retirados pelos inimigos, e na maioria das vezes, seus familiares eram vendidos como escravos. Outro fator era a vergonha que o sobrevivente carregava: vergonha de ter falhado com seu senhor, de não ter conseguido protegê-lo. Um guerreiro sobrevivente sempre podia tentar encontrar um novo lorde, mas era em geral visto com suspeita: não ter mais um senhor sugeria que ou ele não havia lutado de acordo com o código guerreiro vigente e fugido da batalha, ou pior, traído seu senhor para o inimigo. Ele poderia também ter inimigos dentre os familiares de seu senhor, os quais poderiam cobrar dele o wergeld.

3. O earl Byrhtnoth Logo no início do poema, o leitor pode identificá-lo como sendo um nobre corajoso, de valor; diversas passagens assim o comprovam: þa þæt Offan mæg ærest onfunde, / þæt se eorl nolde yrhðo geþolian (l. 4-5): “Quando o filho de Offa viu / que o conde não toleraria falta de esforços...”; Se eorl wæs (...) / hloh þa, modi man... (l. 146-147): “O conde riu, poderoso e valente...”. E até mesmo em sua resposta ao arauto Viking, que vem exigir tributo do povo de Essex: Gehyrst þu, sælida, hwæt þis folc segeð? / Hi willað eow to gafole garas syllan, / ættrynne ord and ealde swurd, / þa heregeatu þe eow æt hilde ne deah. / Brimmanna boda, abeod eft ongean, / sege þinum leodum miccle laþre spell, / þæt her stynt unforcuð eorl mid his werode, / þe wile gealgean eþel þysne... (ll. 45-52)

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Podem ouvir, homens do mar, o que dizemos de nosso lado? / De fato temos algo para lhes enviar – lanças, / dardos mortais e espadas resistentes, / estas constituem a taxa de guerra que são bem-vindos a receber! / Mensageiro dos homens do mar, faça o caminho de volta, / conte a seu povo um conto menos agradável, / que aqui permanece sem medo o conde com seu exército / que irá manter segura esta terra...

O poeta também demonstra o amor e admiração dos guerreiros anglo-saxões para com o seu líder, como nesta passagem: Eac him wolde Eadric his ealdre gelæstan, / frean to gefeohte, ongan þa forð beran (l. 10-11): “Eadric queria servir a seu mais velho, / seu lorde, na luta…”. Entretanto, após reafirmar todas essas características positivas do conde, o poeta aplica a ele um vocábulo de natureza diferente: ða se eorl ongan for his ofermode / alyfan landes to fela laþere ðeode. (l. 89-90): “Então o conde, com auto-confiança excessiva/ deu espaço em demasia àquele impiedoso bando de homens”. Esta passagem mostra o conde cedendo a passagem aos Vikings, para que a batalha pudesse acontecer. O vocábulo do antigo-inglês usado nesta passagem é ofermode. A princípio, sua tradução para o inglês moderno seria “over-confidence” (confiança em demasia); deve-se aqui verificar o que seria mais de acordo com o pouco que se sabe a respeito do nobre: seria ele imprudente e arrogante, como tantos lendários guerreiros, a ponto de permitir a passagem de seus inimigos, com a confiança de que seu exército anglo-saxão venceria a batalha? Em seus estudos sobre “A batalha de Maldon”, J. R. R. Tolkien ressalta que o conde é culpado de um ato de “cortesia” que teria levado seu exército à batalha; entretanto, o estudioso George Clark afirma: O poema não deixa espaço para dúvidas sobre a causa da derrota inglesa, e essa causa não foi a cortesia de Byrhtnoth, extravagância ou orgulho. De acordo com o poema muitos dos homens de Byrhtnoth fugiram, e sua fuga decidiu o resultado da batalha (CLARK, 1979, p. 258).

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Seria realmente intenção do poeta criticar Byrhtnoth, culpando-o pela derrota dos anglo-saxões? Tal pressuposição implica dizer que então o poeta entrara em contradição, pois que posteriormente ele ressalta, no discurso de Aelfwine e Offa, remanescentes em campo de batalha (após a morte de seu líder e da fuga de diversos companheiros) o efeito que a fuga dos últimos teve sobre o exército – salientando, da mesma forma, o papel do guerreiro Godric nisso: Us Godric hæfð, / earh Oddan bearn, ealle beswicene. / Wende þæs formoni man, þa he on meare rad, / on wlancan þam wicge, þæt wære hit ure hlaford; / forþan wearð her on felda folc totwæmed, / scyldburh tobrocen. Abreoðe his angin, / þæt he her swa manigne man aflymde! (l. 237-243) A nós todos Godric, / aquele covarde filho de Odda, traiu. / Muitos homens acreditaram, quando ele foi a cavalo, / naquele esplêndido ginete, que era nosso senhor. / Por isso acontecer aqui no campo de batalha os homens se espalharam, / a parede de escudos quebrando largamente. Vergonha sobre esta ação, / pois por causa dele muitos homens fugiram!

Se o poeta se preocupa em retratar tão detalhadamente a fuga dos desertores, e depois reiterá-la na fala dos outros guerreiros, parece ser então seu intento mostrar aos leitores que a culpa da derrota inglesa é de Byrhtnoth não mais do que daqueles que fugiram. Ou então deduz-se, como já foi dito antes, que o poeta caiu em evidente contradição. De fato, o autor parece inclusive não querer chamar a atenção do leitor para fatos desabonadores de Byrhtnoth. Como exemplo, tem-se a questão da desvantagem numérica. Este seria um fator que, evidentemente, deveria ter feito o conde pensar melhor antes de ceder passagem, pois parece claro que, uma vez estando os Vikings – numericamente superiores – frente a frente com os anglosaxões, a derrota saxã seria certa. Todavia, o poeta não faz, em

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nenhum momento, menção ao número de invasores ou de defensores de Maldon, como que para não nos lembrar do fato de que, sendo a desvantagem saxã óbvia, óbvio também teria sido o erro da decisão do conde, ou seja, a intenção parece ser sugerir que a desvantagem não teria tido peso no resultado do embate. O poeta também não cita o momento em que o cadáver do earl é decapitado, detalhe sensacional, mas que o forçaria a admitir que os Vikings eram mais do que um simples pretexto para o heroísmo do conde e de seus seguidores. Thomas D. Hill leva ainda mais longe o argumento de seus predecessores, comparando o ofermode de Byrhtnoth à extravagância de D. Quixote, na medida em que envolvem uma falha em distinguir o literário da realidade (CLARK, 1979, p. 263). Byrhtnoth, sendo um conde, acostumado a liderar homens em batalhas há muitos anos, sempre colhendo gloriosas vitórias, poderia ter-se deixado levar por um arroubo e tomado uma decisão fatal para todo o seu exército. Um argumento a favor dessa teoria é a resposta do conde ao mensageiro dos Vikings: “Gehyrst þu, sælida, hwæt þis folc segeð? (l. 45 )” [“Podem ouvir, homens do mar, o que dizemos de nosso lado?”]. Não há nenhuma passagem no poema que nos mostre Byrhtnoth consultando qualquer um de seus homens; no entanto, fala no nome deles ao responder ao mensageiro dos “homens do mar”. Segundo alguns estudiosos, ele é egoisticamente seu próprio homem, que falha em sua responsabilidade – na qualidade de comandante tático – para com seus homens. No entanto, alguns protestam, dizendo que, se ele fala no nome de seus homens, é porque estes haveriam irrompido num coro de exortação a seu líder, o que se assemelharia ao barbitus, ou grito de batalha germânico, descrito por Tácito em seu Germania. Tal grito de batalha teria informado imediatamente a Byrhtnoth a posição de seus homens nessa questão. Se Byrhtnoth

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estivesse mentindo e claramente desconsiderando a opinião de seu exército, isto teria sido feito de uma maneira um tanto quanto desajeitada: se não houvessem gritos provindos do exército, tanto anglo-saxões quanto Vikings teriam percebido que o conde estava, na verdade, mentindo quando se refere aos seus homens em sua resposta. E se mentisse, como o amariam seus seguidores? Assim, julgar Byrhtnoth como estando enfatuado com sua condição de nobre e líder militar experiente pode parecer injusto, quando não há, de fato, dados suficientes para fazer tal julgamento. Todavia, quando se examina o vocábulo ofermode, pura e simplesmente, pode-se ver seus possíveis significados. Gneuss nos diz que “combinações de substantivos e adjetivos em Old English com ofer no sentido de ‘excessivo’ são semântica e morfologicamente legítimos e acontecem” (CLARK, 1979, p. 274). Ofer é bastante usado em Old English como um prefixo intensificador, traduzível como ‘excessivo’ ou ‘muito’; na verdade, é com quase toda certeza a origem do prefixo over do inglês moderno (que está presente na palavra overconfidence) e que também é usado no mesmo sentido de excesso, demasia. Há vários exemplos de palavras que comprovam o uso de ofer neste sentido: oferhyrned (with great horns, “com grandes chifres”), oferheah (exceedingly high, “excessivamente alto”), ofermicel (excessive, “excessivo”). Ofermode também se assemelha à palavra angla oferhygd, paralela ao islandês antigo ofrhugi (daring man, “homem ousado”) e ofrhugr (dauntless courage, “coragem destemida”). Levando-se todos esses dados em consideração, vê-se que ofermode, devido à impossibilidade de uma tradução conclusa do étimo, apresenta diversas variações de interpretação. Este vocábulo pode ser tanto uma referência a uma imprudente confiança em demasia, quanto também a um ato de coragem quase cega.

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4. Considerações finais Com os primeiros dados deste trabalho pudemos ver, primeiramente, o contexto histórico no qual se deu a batalha e os motivos pelos quais os guerreiros permaneceram lutando, mesmo após a morte de seu lorde, podendo aqueles ser de natureza religiosa ou pura lealdade a seus ideais. Da mesma forma, os motivos que levaram o autor anônimo a escrever o poema A batalha de Maldon podem ter sido de ordem política ou tão somente estética. Do próprio Byrhtnoth, como já foi afirmado, pouco se sabe de fato. Viu-se também a descrição do earl Byrhtnoth dada no poema e a influência dos perfis anteriormente descritos nela – assim como a polissemia do vocábulo ofermode, gerando controvérsia também na caracterização do herói. O maior problema, no tocante à tradução e interpretação das linhas 89-90 do poema, reside não na polissemia de ofermode, ou nas reais intenções do poeta, mas sim na procura pela conveniência daqueles que as interpretam. O que a maioria dos estudiosos deste poema têm feito é ou adaptar o sentido de ofermode àquele que desejam atribuir ao texto como um todo, ou adaptam o poema ao sentido que desejam dar ao vocábulo. Não se deve formular uma teoria para somente então procurar adaptar os fatos do texto à ela; deve-se, em vez disso, procurar uma resposta que englobe ambas as questões. O caminho para o verdadeiro entendimento de um texto literário reside em não se convencionar uma verdade, em que se possa encaixar os fatos, mas sim examinálos para se chegar à sua verdade intrínseca. Roberta Leopoldino graduanda, UFRJ

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Referências Bibliográficas CLARK, George. The hero of Maldon: Vir Pius et Strenuus. Speculum, vol. 54, n. 2, 1979, pp. 257-282 GRIFFITH, Bill. The Battle of Maldon – Text and Translation. Norfolk, Anglo-Saxon Books, 2003. MORGAN, Kenneth. Oxford Illustrated History of Britain. USA, Oxford University Press, 2000. POLLINGTON, Stephen. The English Warrior: From Earliest Times to 1066. Norfolk, Anglo-Saxon Books, 2006. P OLLINGTON , Stephen. Wordcraft – New English to Old English Dictionary and Thesaurus. Norfolk, Anglo-Saxon Books, 2004. STRONG Roy. The Story of Britain: A People’s History. New York, Fromm International Publishing Corporation, 1996. TREVELYAN George Macaulay. History of England – volume 1 – From the Earliest Times to the Reformation. New York, Anchor Books, 1953.

Resumo Este trabalho analisa de que forma o épico anglo-saxão The battle of Maldon, de autoria anônima, escrito em Old English no século X, articula-se discursivamente para narrar, não uma história dos vencedores, mas sim a dos vencidos. Questionamos de que forma o poeta narra a batalha entre anglo-saxões e Vikings, ocorrida no ano de 991 d.C., e de quem seria a culpa da derrota e da conseqüente invasão da cidade de Maldon: do earl por demais autoconfiante ou dos guerreiros fugitivos da batalha? Ver-se-á aqui de que forma este discurso é construído no poema.

Palavras-chave Maldon, anglo-saxões, Old English, Vikings. Abstract In this article I analyze how the Anglo-Saxon epic The battle of Maldon, written in the 10th century by an anonymous author in Old English, articulates its discourse to narrate, not a story of the conquerors, but of

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the conquered. Through a careful analysis, I question the way the poet narrates the battle between Anglo-Saxons and Vikings, in the year of 991 a.C., and whose would be the fault of the defeat and conquer of the city of Maldon: the overconfident earl’s or the runaway warriors’? It will be seen here the ways this discourse is constructed along the epic. Key-words Maldon, Anglo-Saxons, Old English, Vikings.