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Objetivamos aqui neste estudo apresentar a noção socrática-platônica de ... Nesse sentido, cuidar de si próprio só pode significar cuidar da própria alma.
Universidade Federal Fluminense Grupo de Estudos Helenismo e Religião Aluno: André Miranda Decotelli O CUIDADO DE SI SOCRÁTICO-PLATÔNICO E SUA RECEPÇÃO EM FOUCAULT “A alma, portanto, que nos recomenda conhecer quem nos apresenta o preceito: conhece-te a ti mesmo.” (Apologia, 130e)

1. Introdução Objetivamos aqui neste estudo apresentar a noção socrática-platônica de “cuidado de si” (epimeléia heautón) e a recepção, mais de dois milênios depois, de Michel Foucault dessa concepção. Entendemos as distinções do “cuidado de si” de Platão e de Foucault e pretendemos neste estudo apresentar uma relação entre esses conceitos. De início de conversa, pensaremos o que significa cuidar de si? Para tanto, apresentaremos inicialmente o que entendemos ser a visão de Platão a esse respeito, principalmente nos diálogos Fédon, Apologia e Alcibíades1. Posteriormente, será vista a recepção de Foucault e sua apropriação e desenvolvimento do cuidado de si. 2. O significado do cuidado de si em Platão Fica claro aos leitores do filósofo de Atenas que o cuidar de si implica no cuidado da alma, visto a notória primazia da alma em relação ao corpo em seus diálogos. Para Platão a alma deveria ser cuidada, já que é imortal e tem relação com o divino e o inteligível. Diz o filósofo que “uma vez sendo a alma imortal, é necessário que zelemos por ela não só durante este período de tempo que chamamos de vida, mas com relação à totalidade do tempo” (Fédon, 107c). A alma representa o homem, e este é a sua alma e não seu corpo. Nesse sentido, cuidar de si próprio só pode significar cuidar da própria alma. Como afirma a prof. Maura Iglésias: “Ora, é justamente essa a descoberta platônica, a novidade introduzida na maneira de o homem apreender-se a si mesmo: o homem é a sua alma. Porque a alma que Platão descobriu é o que constitui a verdadeira natureza do homem que ele buscou” (IGLÉSIAS, M. Platão: A descoberta alma. Boletim do CPA, Campinas, nº5/6, jan/dez, 1998) 1 O Alcibíades tem sido atacado por alguns comentadores de Platão como não sendo realmente desse filósofo. Scheleimacher dentre outros negam sua autencididade. Thomas Robinson afirma que o estilo não é Platônico, nem mesmo a adulação realizado por Sócrates seria típica dele. Cf. ROBINSON, T. A psicologia de Platão. São Paulo: Loyola, 2007. Já Vitor Goldschimit afirma que “estamos convencidos de que o diálogo só pode Platão por autor”. Cf. GOLDSCHMIDT, V. Os diálogos de Platão: estrutura e método dialético. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 302.

O corpo deveria ser evitado e não caberia ao filósofo o seu cuidado. Cuidam do corpo aqueles que o amam (filosomatos), que amam o dinheiro (filokrematos) e os que amam as honras (filotimos) (Fédon, 68c) . O corpo serve a alma, mas não é algo próprio do homem e sim um instrumento, pois, “quem cuida do corpo, não cuida de si mesmo, mas apenas do que lhe pertence. (…) Porém o que cuida de sua fortuna, nem cuida de si mesmo, nem do que lhe pertence; encontra-se mais afastado, ainda, do que lhe diz respeito” (Alcíbíades, 131b-131c)”. Platão é o filósofo que relata os ditos e feitos do seu mestre Sócrates. Há uma enorme discussão na academia quanto ao verdadeiro Sócrates Histórico. Teria Platão colocado na boca de seu mestre ideias próprias? Para alguns comentadores, o que se pode afirmar no meio dessa grande questão é que a centralidade da mensagem socrática implica no “cuidado da alma como o núcleo da sua mensagem ética e, portanto, como o núcleo essencial do seu pensamento filosófico”(REALE, 2002:155). O historiador da filosofia, Giovanni Reale, afirma que Sócrates assumiu a sua missão, confiada a ele pelo deus, de conduzir todos os homens ao cuidado da própria alma, mais do que do corpo e das posses. Reale cita o texto da Apologia de Sócrates, afirmando que as suas ideias constituem um fundamento sobre o qual se fincou e desenvolveu o pensamento ocidental. No diálogo em questão, Sócrates diz “pois tudo o que faço em minhas andanças é vos instar, jovens e velhos entre vós, a não zelardes por vossos corpos ou vossas riquezas mais do que pela perfeição possível de vossas almas.” (Apologia, 30a) e ainda,“de fato procurei convencer cada um de vós a zelar por si mesmo e por seu próprio aprimoramente no que tange a ser bom e sábio” (Apologia, 36a). Este texto seria, então, base para se encontrar indícios do Sócrates histórico, sem o incremento metafísico de Platão. Para Reale, a tese da imortalidade da alma que Platão desenvolve, não é tese de Sócrates, dos socráticos,2 nem dos homens de cultura do século IV a.C. (REALE, 2002:158). Para o italiano, Sócrates também falou da capacidade da alma em conhecer o bem e o mal, dirigir as ações humanas, mas nunca definiu sua natureza ontológica. Platão é quem o faz após a sua “segunda navegação”, conforme relatado no diálogo Fédon. Outro comentador, que afirma de igual modo a tese do pensamento socrático como sendo o “cuidado da alma”, é John Burnet, que diz ser o trecho da Apologia de Sócrates 29d-30a o núcleo do pensamento de socrático3. Neste, a ênfase é dada ao cuidado da alma e como torná-la tão boa quanto possível. “homem excelente, sendo como és, um cidadão de Atenas, a maior das cidades-Estado e a mais notória por sua sabedoria e poder, não te sentes envergonhado por te preocupares com a aquisição de riqueza, reputação e honras, enquanto não te importas e nem atentas para a sabedoria, a verdade e o aperfeiçoamente de tua alma.” (29d-29e)

Para Burnet a visão de Sócrates da alma introduz algo de novo no pensamento grego e este tinha plena 2 Reale apresenta uma interessante fala de Isócrates que parece coadunar bastante com a de Sócrates: “Tendo compreendido que a mais nobr e mais séria ocupação é o cuidado da alma, exortereis aqueles jovens, que possuem suficientes meios de vida e que podem dispor de tempo livre, a esses estudos e a essa prática”. Cf. REALE, 2002, p.160 3 BURNET, J. p. 235. Apud ROBINSON, T., p.39.

consciência dessa sua novidade. 3. O cuidado da alma implica redirecionamento ético É na alma que se encontra, além do princípio vital, o princípio cognitivo e a sede da sua personalidade. Na alma está o “eu” verdadeiro, o que implica a ela atribuições éticas. O filósofo buscaria a virtude(areté) através de sua alma. A sua purificação é uma das formas de cuidado que o homem pode ter. Através dessa purificação, a saber, o máximo distanciamento do corpo e de suas peculiaridades(Fédon, 67a), o filósofo ruma em busca da virtude e do conhecimento. E nisto consiste a purificação que já há algum tempo mencionamos em nosso discurso, a saber, em separar a alma o máximo possível do corpo, e instruí-la e habituá-la a recolher-se em si mesma e conservar sua integridade em relação a todas as partes do corpo. (Fédon, 67c)

O cuidado de si na filosofia de Platão é também um treino(meléte) para a morte. Aqueles que devotam sua vida à filosofia, limitam-se a estudar o morrer e estar morto(Fédon, 64a). Os verdadeiros filósofos não só não temem a morte, isso seria ridículo, diz Platão em (Fédon, 67d), mas a anseiam, já que esta é a separação da alma ao corpo: “aqueles que cultivam a filosofia da maneira correta, se exercitam para morrer, a morte se afigurando para eles menos temível do que para quaisquer outros seres humanos” (Fédon, 67e). A sabedoria seria acompanhada da coragem, autocontrole, justiça, e estes são em síntese a verdadeira virtude. Para Platão, a purificação de todas as coisas é realizada através destas virtudes, acompanhadas da sabedoria, caso contrário, são apenas aparências fantasiosas de virtude.

SABEDORIA

Coragem Justiça Autocontr ole

Em síntese a

VIRTUDE

Purificação

ALMA

O filósofo, na medida em que busca, através do cuidado de sua alma a verdade, visando o Bem, irá obter uma vida virtuosa. É nesse sentido que o corpo é um impedimento a se fazer filosofia e obter a virtude, já que ele tem ocupações e peculiaridades outras, como paixões, desejos e prazeres, que ofuscam a visão do

homem à filosofia. O cuidado da alma é a fuga dessas necessidades supérfluas4. “Se cuidardes de vós mesmos em tudo quanto fizerdes, estareis servindo a mim, aos meus e a vós próprios mesmo que não prometeis agora. Todavia, se fordes negligentes convosco mesmos, e não mostrardes predisposição para viver segundo as etapas, por assim dizer, do caminho delineado pelo que aqui e agora dissemos e por nossas discussões anteriores, vossa realização será nula, independentemente de quanto e quã ansiosamente fizerdes promessas neste momento”.(Fédon, 155b-155c)

O cuidado de si tem também implicações no para além, quando da ida ao Hades após a morte. Há todo um desdobramento após a morte que, dependendo do cuidado do homem com sua alma, poderá viver em eterna comunhão com os deuses ou reencarnar em um corpo após um longo processo de expiação 5(113d114c). Portanto, sendo “a alma imortal, não há como escapar do mal ou salvação para ela, exceto se tornando tão boa e sábia quanto possível”. (Fédon, 107d) Além dessa questão escatológica e soteriológica, Sócrates acredita que deveria receber outra recompensa por sua postura de vida. Na Apologia ele irá questionar: então o que merece um homem como eu? Algum bem, homens de Atenas, se é que devo propor algo verdadeiramente em conformidade com meu merecimento(...). Nada há, homens de Atenas, tão adequado quanto tal homem receber suas refeições no pritaneu. Isso é muito mais adequado a mim do que a qualquer um de vís que haja vencido nos Jogos Olimpicos com cavalo, biga ou quadriga. O vencedor olímpico vos faz parecer feliz, enquanto eu vos faço feliz (Apologia, 36d-36e. Grifo nosso)

O engajamento ético do filósofo que cuida de sua alma é notório e claro em Sócrates. A experiência do filósofo não é apenas racional ou teórica. Ela é prática e vital. Para ele, a busca pela verdade consiste na vivência da filosofia como forma de vida. A este respeito, Pierre Hadot nos traz contribuições importantes: "No fim das contas, após ter dialogado com Sócrates, seu interlocutor toma distância em relação a si mesmo, desdobra-se, uma parte de si mesmo identificando-se, de agora em diante, com Sócrates no acordo mútuo que este exige de seu interlocutor em cada etapa da discussão. Opera-se nele uma tomada de consciência de si; ele se põe a si mesmo em questão" (HADOT: 1999, p. 55-56).

Para Hadot, há uma reviravolta na vida do homem que se encontra com Sócrates e seu estilo de vida. Há uma subversão total dos valores, das certezas, dos dogmas. Sócrates é um incômodo do qual os homens gostariam de evitar, a fim de que permaneçam, em certo sentido, evitando a si mesmos. A missão de Sócrates é fazer com que os homens tomem consciência de seu não-saber:

4 Vale ressaltar que Platão afirma que há necessidades que devem ser atendidas de forma controlada... 5 Há ainda uma terceira via que é destinada aqueles que tem almas incuráveis devido a sua enormidade de faltas, por terem perpretad muitos grandes sacrilégios ou assassinatos injustos que violam a lei. Para estes é o destino é serem arremessados ao Tártaro, para jamais dele saírem

"...não se trata de uma atitude artificial, de um parti pris6 de simulação, mas de uma espécie de humor que recusa levar totalmente a sério tanto os outros como a si mesmo, porque, precisamente, tudo o que é humano, e mesmo tudo o que é filosófico, é coisa bem pouco assegurada, de que não se pode ter muito orgulho. (HADOT, 1999:52).

Para Pierre Hadot, Sócrates opera no homem que se encontra com ele um convite a vida. Esse caráter protrético é também um convite a superação da individualidade em direção a vida gregária. Seus concidadãos não podem perceber seu convite para examinar seus valores, sua maneira de agir, para tomar cuidado consigo mesmo, como também para uma ruptura radical coma vida cotidiana, com os hábitos e as convenções da vida corrente, com o mundo que lhe é familiar. Mas, de outro lado, esse convite para tomar cuidado consigo mesmo não será um apelo para afastar-se da cidade, vindo de um homem que está, de alguma maneira, fora do mundo, átopos, ou seja, que é estranho, inclassificável, absurdo? Sócrates não será o protótipo da imagem tão disseminada e, por outro lado, afinal tão falsa do filósofo que foge das dificuldades da vida, para refugiarse em boa consciência? (HADOT, 1999:66)

Nesse sentido, Sócrates é o homem disposto a através de sua maiêutica formar homens. Como afirmou Simplício, o lugar do filósofo na cidade deve ser o de um escultor do homem. O filósofo Vitor Goldschimit diz que, a respeito do caráter aporético e inconclusivo de alguns, os dialogos platônicos não tinham interesse em informar, mas sim em formar homens7

o cuidado de si é, portanto, indissoluvelmente cuidado da cidade e cuidado dos outros, como se vê pelo exemplo do próprio Sócrates, cuja razão de viver é ocupar-se com os outros. Há em Sócrates um aspecto ao mesmo tempo “missionário” e “popular”, que se reencontrará posteriormente em certos filósofos da época helenistica. (HADOT, 1999:68)

4. O cuidado de si no Alcibíades No diálogo Alcibíades, Sócrates irá apresentar sua ideia de “Cuidado de si” respondendo as seguintes questões, levantadas por ele próprio “O que significa a expressão cuidar de si mesmo? Pois pode muito bem dar-se que não estejamos cuidando de nós, quando imaginamos fazê-lo. Quando é que o homem cuida de si, mesmo? Ao cuidar de seus negócios cuidará de si mesmo?” (128a) Neste diálogo, Sócrates convida o amado aristocrata Alcibíades, que tinha pretensões políticas, a primeiro refletir sobre sua vida e, nesse sentido, conhecer si próprio. O cuidado de si deve ser anterior ao cuidado de qualquer outra coisa. Com isso, para cuidar de si, o homem deve primeiro se conhecer. O cuidado de si (epiméleia heautoû) estaria atrelado ao princípio do “conheça-te a ti mesmo” (gnôthi seautón) do Oráculo de Delfos. O saber de si, do mundo, só se dá na medida em que nos ocupamos de nós mesmos. Sócrates afirma, então, “quer seja coisa fácil, quer difícil, Alcibíades, o que é certo é que, conhecendo-nos, ficaremos em condições de saber como cuidar de nós mesmos, o que não poderemos saber se nos 6 Opinião assumida antecipadamente, de maneira preconcebida ou tendenciosa 7 GOLDSCHIMT, Les Dialogues de platon, Paris, 147, p.3 Apud Hadot, p. 113

desconhecermos” (129a) O “conheça-te a ti mesmo” acaba por ser um injução para conhecer a própria alma (ROBINSON, 2007:45) já que o conhecimento do corpo não é de si, mas sim das posses do homem. Sócrates diz não haver necessidade de demonstrar que o homem é a alma (130c), sendo assim, ele, então, conclui que é “a alma, portanto, que nos recomenda conhecer quem nos apresenta o preceito: conhece-te a ti mesmo.” (Apologia, 130e). O cuidado de si é, necessariamente, o cuidado da alma, pois “só te ama quem amar tua alma” (131c). O filósofo que ama a alma, não a abandona enquanto ela aspirar ser aperfeiçoada (131d).O aperfeiçoamento da alma se dá no aperfeiçoamento do que é próprio ao homem. Ao ser indagado por Alcibíades “de que maneira podemos cuidar de nós mesmos?”(132b), Sócrates afirma que devemos evitar o perigo de acharmos que estamos cuidado de nós mesmos quando cuidamos do corpo, já que este não é o homem e sim apenas o que lhe pertence (131b). A conclusão é que “é da alma que devemos cuidar e para que devemos volver as vistas” (132c). Para tanto, o cuidado com o corpo e as riquezas devem ser deixados de lado. Platão apresenta o caminho para o conhecimento de si, para tanto, apresenta uma analogia com os olhos. Para se conhecer algo, ele diz, se utilizaria os olhos. Se alguém desejasse conhecer a si mesmo deveria, então, se olhar no espelho. Com isso, a alma deve olhar para a própria alma, e nesta, a sua parte em que reside a virtude mais específica, a saber, a inteligência. Ele concluirá que “quem a contemplar e estiver em condições de perceber o que nela há de divino, Deus e o pensamento, com muita probabilidade ficará conhecendo a si mesmo”(133c). Conheceremos a nós mesmos quando alcançarmos o conhecimento perfeito da alma. O conhecimento de si dá possibilidades do homem conhecer a essência última do ser, descobrir o que somos (129b). Quem ignora o conhecimento de si não poderá conhecer os outros, nem mesmo a cidade. Assim, um homem que não se conhece não poderá exercer a vida política(133e). Platão irá concluir que a cidade, para ser feliz, não precisa de muros, nem de trirremes, nem de estaleiros, nem de tamanho ou população ou riqueza(134b). Ela precisa da virtude (areté). O político que cuida de si, na busca do conhecimento de si será feliz e fará, consequentemente, seu povo feliz, vivendo e ensinando a virtude. Um político que não a tem, não poderá fornecê-la a ninguém(134c). O resultado do cuidado de si no diálogo Alcibíades é a felicidade, a virtude, o tornar-se belo: “esforça-te para te tornares cada vez mais belo.” (131d). 5. Foucault e o cuidado de si No curso ministrado no College de France, e que foi posteriormente editado na obra Hermenêutica do Sujeito, Michel Foucault afirma que era necessario estudar no pensamento antigo, mais especificamente grego e romano, o conceito de “cuidado de si” a fim de se entender melhor as relações de sujeito e verdade. O conceito do cuidado de si (epiméleia heautou) é, para Foucault, rico e complexo e pode ser definido

sinteticamente como o ocupar-se de si mesmo, preocupar-se consigo. Para este pensador, ele, o cuidado de si, não cessou de constituir um princípio fundamental característico na filosofia ao longo de quase toda a cultura grega, helenistica e romana (FOUCAULT, 2011, p.10). Parte-se então da prescrição délfica: “Conheça-te a ti mesmo” (gnôthi seautón) como a fórmula fundadora da questão das relações entre sujeito e verdade(FOUCAULT, 2011, p.4). Mas como veremos, tentarei mostrar-lhes de que maneira esse princípio de precisar ocuparse consigo mesmo tornou-se, de modo geral, o princípio de toda conduta racional, em toda forma de vida ativa que pretendesse, efetivamente, obedecer ao princípio da racionalidade moral. (FOUCAULT, 2011, p.10)

Foucault irá, então, apresentar algumas escolas filosóficas destas épocas que foram importantes para esta noção como os epicuristas8, cínicos, estóicos e neoplatônicos, além de citar especificamente pensadores como Platão, Filon, Sêneca, Epiteto, Marco Aurélio, Demétrio, Plotino, Gregório de Nissa entre outros. Para ele, “desde o personagem de Socrates, interpelando os jovens para lhes dizer que se ocupem consigo até o ascetismo cristão, que dá início à vida ascética com o cuidado de si, vemos uma longa história da noção de epiméleia heautou”. (FOUCAULT, 2011, p.11). No entanto, nessa história do pensamento, será com Platão que Foucault irá se apropriar mais detidamente a respeito da noção de cuidado de si. A obra definida como essencial para esta análise será Alcibíades, que para o filósofo francês, se trata da primeira e única teoria global entre todos os textos de Platão sobre a emergência teórica da epiméleia heautón. (FOUCAULT, 2011:44). Foucault irá afirmar que o cuidado de si designa o conjunto de transformações de si que constituem a condição necessária para se ter acesso a verdade (FOUCAULT, 2011:17), já que é “a verdade que ilumina o sujeito, a verdade é o que lhe dá beatitude; a verdade é o que lhe dá tranquilidade de alma. Em suma, na verdade e no acesso a verdade, há alguma coisa que completa o próprio sujeito, que completa o ser mesmo do sujeito e que o transfigura” (FOUCAULT, 2011:16). Ele sintetizará a epiméleia heautou em três atribuições gerais: 1) Um certo modo de encarar as coisas, de estar no mundo, de praticar ações, de ter relações com o outro. É uma atitude para consigo, para com os outros, para com o mundo; 2) Um certa forma de atenção, de olhar. Não para o exterior, mas para si mesmo (não o interior, já que este conceito traz muitos problemas). É estar atento ao que se pensa e se passa no pensamento. (relação da epiméleia com mélete); 3) Implica ações pelas quais nos assumimos, nos modificamos, nos purificamos, nos transformamos e nos transfiguramos. Sendo assim, Foucault resgatará do esquecimento a noção de cuidado de si, analisando o motivo de sua 8 Foucault cita Epicuro: “todo homem, noite e dia, e ao longo de toda a sua vida, deve ocupar-se (therapeúein) com a própria alma(...) para ninguém é demasiado cedo nem demasiado tarde para assegurar a saúde da alma(...) de mdo que devem filosofar tanto o jovem como o velho”.

desconsideração por parte da história da filosofia e o por que de se ter privilegiado tão fortemente o “conheça-te a ti mesmo” e deixado de lado na penumbra o cuidado de si: “Por que esse privilégio, para nós, do gnoôthi seautón às expensas do cuidado de si?”(FOUCAULT, 2011:13), questiona o filósofo francês, ao que o mesmo tempo aponta respostas a essa questão na direção do que chama de “momento cartesiano”9. 6. Alcibíades para Foucault Logo de início, Foucault não irá entrar na questão da autenticidade desse diálogo, que, para ele, estava praticamente acertada, mas irá estudar sua origem, natureza e consequências, a fim de suscitar algumas questões quanto ao “cuidado de si”. No entanto, parece-me que Foucault não tem a intenção de retornar aos gregos e sim questionar processos atuais de subjetivação. No Alcibíades, a prescrição délfica do “Conheça-te a ti mesmo” é associada ao “Cuidado de si” a fim de de que o jovem com pretensões políticas seja orientado a fazer o melhor nessa função. Para tanto, é preciso refletir sobre si mesmo e que conheça a si mesmo. Nesse sentido, a necessidade de cuidar de si está vinculada ao exercício do poder. Segundo Foucault: Não se pode governar os outros, não se pode bem governar os outros, não se pode transformar os próprios privilégios em ação política sobre os outros, em ação racional, se não se está ocupado consigo mesmo. Entre privilégio e ação política, este é, portanto, o ponto de emergência da noção de cuidado de si. (FOUCAULT, 2011:35)

Nesse sentido, o cuidado de si é um imperativo proposto àqueles que querem governar os outros. Implica em uma téchne, a saber, uma arte viver (téchne toû bíou) e governar os outros. No entanto, Foucault irá em seguida mostrar como este imperativo se generalizará e tornar-se-á um imperativo para todo mundo(FOUCAULT, 2011:69). A universalização do cuidado de si é realizada pós-Platão, com as demais correntes filosóficas helenisticas que se apoderarão do conceito moral délfico. Foucault irá afirmar que este processo se deu a partir transformação da concepção da platônica, que via o cuidado de si como diretriz formadora exclusiva ao jovem, para uma concepção mais “adulta”, na qual este cuidado se dará na maturidade do homem: “doravante, o cuidado de si não é mais um imperativo ligado simplismente a crise pedagógica daquele momento entre a adolescência e a idade adulta. O cuidado de si é uma obrigação permanente que deve durar a vida toda.”(FOUCAULT, 2011:80). Foucault inicia sua jornada rumo a universalização do “cuidado de si” com Epicuro, que afirmou que “nunca é demasiado cedo nem demasiado tarde para te cuidados com a própria alma” 10, passando por Rufus, segundo o qual é “cuidando-se sem parar que se pode salvar-se” e Sêneca que escreve a Lucílio já estando este na sua vida madura. Ele ainda cita Epiteto, que instruída adultos a se “ocuparem 9 Seria o momento na modernidade em que o sujeito ficou na ansia da verdade e ao conhecimento e não mais ao cuidado de si. Houve uma inversão do conhecimento de si pela teoria do conhecimento. 10 Carta a Meneceu, In: FOUCAULT, 2011:80

verdadeiramente de si mesmos”, os cínicos que se dirigiam nas praças à todos e Fílon que busca a epimeléleia tês psychês. Este conta no texto De vita contemplativa, o trabalho dos terapeutas em relação ao cuidado com a alma: Tendo seu desejo de imortalidade e de vida bem aventurada os levado a acreditar que já haviam terminado sua vida mortal, deixam seus bens a seus filhos, suas filhas, seus próximos: deliberadamente, fazem deles herdeiros por antecipação; quanto aos que não têm família, deixam tudo ao seu companheiro, e aos seus amigos. (FOUCAULT, 2011:83)

O relato de Fílon dá conta de homens que ocupavam-se com a própria alma no final da vida, não mais no começo, como no caso de Alcibíades. Através dessa sequência de exemplos, Foucault postula que houve uma recentralização/ descentralização do cuidado de si. A partir do instante que o cuidado de si se torna uma atividade adulta e não mais jovial, ela age mais no sentido corretivo e menos formador. A pratica de si não mais se impõe apenas sobre o fundo de ignorância, como no caso do Alcibíades, ignorância que ignora a si mesma. A prática de si impõe-se sobre o fundo de erros, de mais hábitos, de deformação e dependência estabelecidas e inscrustadas, e que se trata de abalar. Correção-liberação, bem mais que formação-saber: é nesse eixo que se desenvolverá a prática de si, o que, evidentemente, é fundamental. (FOUCAULT, 2011:86)

A generalização do imperativo do cuidado de si, oriunda do deslocamento cronológico do final da adolescência para a idade madura gera três consequências diretas: a primeira é a função crítica quanto a sua capacidade formadora; a segunda quanto a sua nova proximidade com a medicina, já que agora é também um cuidado do corpo (vide as questões estóicas quanto a saúde, principalmente com os hipocondríacos Sêneca e Marco Aurélio), diferente do caso platônico, aonde o cuidado de si era estritamente o cuidado da alma. A última consequência é quanto a nova importância a velhice, que agora se entende como o coroamento da vida, a mais alta forma do cuidado de si, o momento da sua recompensa está justamente na velhice. (FOUCALT, 2011:99) Foucault por fim insere uma questão quanto ao motivo do cuidado de si ter se dado, na matriz grega clássica, com o destino à governantabilidade apenas. Lá, ele se dava no interior de uma diferença de status, no qual o elevado socialmente recebia seu destino sem questionamento e, para tanto, deveria cuidar de si mesmo. No entanto, com os grupos posteriores, Foucault afirma que esse princípio não se dá mais, já que para um estóico, o escravo poderia ser mais livre do que o senhor. Com isso, pode-se concluir que sem essa diferença de status, todos os indivíduos em geral são capazes de ter realizar a prática de si. “O princípio de ocupar-se consigo (obrigação de epimélesthais heautou) poderá ser repetido em toda parte e para todos” (FOUCAULT, 2011:107)11 11 Foucault aqui faz uma importante observação comparando essa questão com a salvação cristianismo. Assim como nesse caso, em que a salvação através de Jesus é universal e para todos a escuta a essa “boa nova” é rara. Ele cita Epiteto quando este diz que o preceito délfico estava no centro da oikouméne, mas mesmo assim poucos o liam e observavam. O filósofo estóico teria então questionado quantos jovens Sócrates teria conseguido persuadir para terem cuidado consigo mesmos? Nem mesmo um em mil, conclue Epiteto. A mensagem é para todos, mas são poucos que a escutam.

7. Conclusão O “cuidado de si” desemboca, para Foucault, em uma estilização da existência ou estética da existência, onde o homem arma sua vida de acordo com sua escolha, como expressão máxima da sua liberdade. O cuidado de si está disponível a todos os homens que podem escolher esse caminho como estilo de vida. A vida passa a ser definida como uma obra de arte: em nossa sociedade, a arte tornou-se algo relacionado apenas a objetos e não a individuos ou a à vida. Essa arte é algo especializado ou feito por esspecialista que são artistas. Mas não poderia a vida de todos tornar-se uma obra de arte? Por que a lâmpada ou a casa deveriam ser um objeto de arte, mas não a nossa vida?(FOUCAULT, M., On the genealogy of ethics, p. 350. Apud OKSALA, 2011:121)

Neste caso, Focault aponta para um modo de existir que parte da ideia de “temos que criar a nós mesmos como uma obra de arte” (FOUCAULT, 1984, p. 50). A ênfase na estética não significa portanto, que Foucault propunha que procurássemos parecer belos. Sua ideia era que deveríamos nos relacionar com nós mesmos e com nossas vidas enquanto algo que não era simplismente dado, mas podia ser formado e transformado criativamente. (OKSALA, 2011:123)

Para este filósofo, a o processo através do qual o sujeito forma a si mesmo, com o cuidado de si, é semelhante à criação de uma obra de arte, por isso chamou esse processo ético de estética da existência.

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